Em 1906, a atual república do Mali correspondia à colônia do Alto Senegal e Níger, criada em 1904, e o território militar do Níger, áreas que se estendiam do rio Senegal até as margens ocidentais do lago Chade, e eram chamados pelos europeus de Sudão francês. Fortier utiliza essa denominação nas legendas dos cartões-postais. Em nosso texto, empregaremos o termo Sudão para nos referir à região percorrida pelo fotógrafo.
Durante os primeiros anos do século XX, um fenômeno social de grandes proporções ocorria no Sudão: o êxodo de pessoas que abandonavam a condição de escravos e migravam para seus locais de origem.61 Muitas delas tinham sido capturadas e vendidas por Samory Ture em troca dos armamentos e cavalos de que necessitou para combater os franceses. Como haviam se tornado cativas recentemente e a memória de uma vida em liberdade ainda estava presente, essas vítimas de conflitos foram os pioneiros do processo que se alastrou pela região. O êxodo se iniciou logo que, após a queda de Samory, terminaram as guerras da conquista francesa. Nos anos de 1905 e 1906, a dimensão da migração era significativa, com milhares de escravos deixando a região do Bélédougou e se dirigindo ao Sul.
À época da penetração francesa no Sudão, avalia-se que pessoas escravizadas correspondiam a cerca de metade da população.62 Os administradores coloniais em geral eram complacentes em relação à escravidão, justificada pelo temor de que seu fim levasse à convulsão social e ao desabastecimento, já que as áreas agrícolas deixariam de ser cultivadas. Ademais, para controlar o território, os franceses dependiam dos chefes locais aliados, que exploravam o trabalho escravo.63
As grandes obras empreendidas pelos franceses, como a estrada de ferro e a construção da nova sede da administração em Bamako, abriram frentes de trabalho contratado que garantiam a sobrevivência aos ex-cativos. Possibilidades de atividade autônoma nas cidades também encorajavam as pessoas a abandonarem a condição servil. A questão da persistência do trabalho escravo na África do Oeste colocava impasses para a administração francesa e, em dezembro de 1905, por sugestão do Governador Geral Ernest Roume, um decreto metropolitano tornou ilegal o tráfico e a escravização de pessoas, embora a escravidão não tivesse sido de fato abolida.64 No Sudão, como explica Martin Klein, a liberação decorreu mais da iniciativa dos próprios escravizados do que da nova legislação.65 Entre 1905 e 1913, calcula-se que cerca de um milhão de pessoas tenham deixado a condição servil nas colônias francesas da África do Oeste.66
A passagem de Fortier pelo Sudão, em 1906, foi contemporânea ao êxodo de Banamba e, como veremos, algumas vezes podemos identificar nos cartões-postais que o fotógrafo editou sinais do processo de transformação social em curso naquele momento. Outras informações importantes constam de itens da Collection Générale aqui reunidos, como as fotografias das cidades históricas de Ségou, Timbuktu e Djenné e as primeiras imagens publicadas das falésias de Bandiagara. Registros preciosos dos ritos do Ciwara, do Kórèdugaw e do Sanké mon, praticados até hoje, fazem dessa série um rica fonte para o estudo da região.
O vale do rio Níger e as falésias de Bandiagara
Bamako e o rito ciwara
Fortier partiu de barco de Siguiri, na então Guiné francesa, e desceu o rio Níger em direção à cidade de Bamako, capital da colônia do Alto Senegal e Níger, 210 quilômetros a jusante.
Em 1906 Bamako preparava-se para receber a estrutura administrativa do governo da colônia do Alto Senegal e Níger. A cidade de Kayes, às margens do rio Senegal, havia sido sede colonial por muitos anos. Após décadas de trabalhos de construção, a estrada de ferro que ligaria Kayes ao rio Níger chegou em 1904 a Bamako, local escolhido para ser a nova capital. O palácio do governo, Koulouba, ainda em uso na atual República do Mali, estava sendo construído no chamado ponto F, no alto da montanha de onde Fortier fotografou o panorama da cidade. Visto do alto, podemos identificar o traçado perpendicular das avenidas projetadas pelos franceses, ladeadas de árvores. Cerca de 6 mil pessoas viviam em Bamako na época, das quais apenas 162 eram europeus.67 Como escala ou ponto final, o destino preferencial das pessoas que deixavam a condição servil era Bamako, onde havia postos de trabalho.
A parte coberta do grande mercado de Bamako havia sido reconstruída pela administração francesa e, em 1906, um aluguel era cobrado dos comerciantes locais lá instalados permanentemente.68 Na parte externa, a grande movimentação decorria das ofertas de mercadorias e alimentos em pequenas quantidades feitos pelos vendedores itinerantes e pelas mulheres. Esteiras de palha trançada sustentadas por hastes serviam de abrigo individual para os mercadores itinerantes e, ao lado destas, reconhecemos os suportes feitos de cipó usados para o transporte de produtos.
Os montículos brancos dispostos no solo e medidos por meio de diversos tamanhos de latas que vemos na imagem acima eram provavelmente o sal marinho importado do Senegal e de Marselha e que, de qualidade inferior e de conservação mais difícil, porém mais barato do que o sal-gema vindo do deserto, penetrava aos poucos os mercados do Sudão.69
A maior parte da população de Bamako era de origem bambara (bamana), um subgrupo dos malinquês, e a agricultura era praticada nos arredores da cidade. Diversos ritos das sociedades de iniciação, cujo objetivo é a socialização, acompanham o calendário agrícola. A festividade fotografada por Fortier, um ritual da sociedade Ciwara, ocorre antes da semeadura e na época da capina dos campos cultivados. A representação de antílopes esculpidos na madeira que formam cristas na cabeça dos homens que dançam são os símbolos mais conhecidos do Ciwara. Como existem muitos elementos nas fotografias de Fortier, o que dificulta identificar cada um separadamente, ampliamos as cristas-antílopes que aparecem nas images, antes e durante as danças. Essas fotografias, talvez os registros mais antigos desse ritual, são bastante interessantes, pois mostram o contexto em que esses objetos eram usados. Hoje, vendidos avulsos e representados graficamente como símbolos da República do Mali, os antílopes Ciwaraw perderam muito de seu significado original.
A apresentação da sociedade Ciwara se dá sempre durante o dia. Uma parte do rito se passa nos campos e outra, nas aldeias. Na cidade de Bamako, a cerimônia fotografada por Fortier ocorreu num grande espaço contíguo a uma construção colonial, de cuja varanda foram provavelmente feitos alguns registros. Uma das características importantes da sociedade Ciwara é o seu caráter aberto, pois toda a comunidade pode participar dos ritos. Mulheres e crianças, que normalmente são excluídas das celebrações das sociedades de iniciação, participam do coro entoado pelo auditório. Apenas os homens, entretanto, escolhidos entre os melhores cultivadores, podem usar as cristas antílopes. Eles dançam sempre em dupla, um portando a representação do antílope macho (o sol) e outro, a da fêmea, com um filhote às costas (a terra), de cuja união mítica nasce a fertilidade dos campos. As danças do Ciwara simulam o trabalho na terra.70 Destacam-se nas fotografias os instrumentos musicais, principalmente as kora e os balafon, com suas imensas caixas de ressonância feitas com cabaças. Assim como nos registros das performances na Guiné, é difícil saber se essas apresentações eram espontâneas ou aconteciam sob encomenda para um público europeu. É interessante notar que, apesar das características muito específicas do ritual, Fortier, que apreciava fornecer informações precisas nas legendas de seus cartões-postais, é pouco exato nesse caso.
Nyamina, o algodão e o karité
Até meados do século XIX, Nyamina, na margem esquerda do rio Níger, era um centro importante de comércio e produção agrícola. Os campos ao redor da cidade eram cultivados por mão de obra escravizada que produzia sorgo, milhete e algodão. Durante a entressafra, essas pessoas dedicavam-se à atividade têxtil, fiando e tecendo panos de algodão. Era também no período da seca que os povos do deserto chegavam com seus rebanhos até a região, ponto extremo meridional do movimento sazonal de transumância. Localizada no encontro das zonas ecológicas do deserto e da savana, banhada pela grande via de comunicação que é o rio Níger, Nyamina era um ponto central no comércio de longa distância da África do Oeste. Por muito tempo parte da área de influência do reino bambara de Ségou, a localidade foi conquistada por Umar Tall em 1860 e, a partir de então, com as guerras sucessivas, foi perdendo sua importância. Dominada pelos franceses em 1890, em 1906 a cidade ainda conservava parte do dinamismo.
Um cartão-postal mostra a coexistência das crenças islâmicas e animistas no local. A mesquita de adobe, com seu minarete elevado, foi erguida nas proximidades das lagoas onde viviam iguanas totêmicas. As “imensas escavações” mencionadas na legenda eram os locais de onde os habitantes de Nyamina retiravam a terra usada nas construções.71
A atividade do mercado de Nyamina foi descrita em detalhes em 1863 por Eugène Mage, oficial da Marinha francesa e explorador enviado por Faidherbe à região para estabelecer contatos com El Hadj Umar Tall. Embora referente a um período bem anterior à passagem de Fortier pela localidade, a narrativa de Mage dialoga com os registros do fotógrafo:
Em Yamina [Nyamina], como em todas as grandes cidades, o mercado funciona todos os dias; mas há um dia da semana em que o mercado é maior, e nesse dia, dos arredores e por vezes de locais longínquos, vemos afluir gente e provisões. Compradores e vendedores chegam aos bandos. Assistimos em Yamina ao espetáculo de um desses dias de comércio, e considerando que a cidade está hoje arruinada, e as caravanas agora só chegam de tempos em tempos, pudemos fazer uma ideia do que terá sido o evento na época em que mil camelos vinham descarregar o sal de Tichit, enquanto centenas de jumentos chegavam do Bouré com trezentos ou quatrocentos carregadores, vindos muitas vezes da Serra Leoa com suas cargas sobre a cabeça. O mercado é uma grande praça quadrangular ao redor da qual foram instalados, sem grande regularidade, pequenos alpendres. […] Sob esses abrigos vemos um, dois e até três mercadores sentados em esteiras, tendo à frente, sobre outras esteiras ou pendurados em cordas, seus artigos de comércio: sal, contas de vidro, panos, papel, enxofre, munição para fuzis, argolas de cobre ou de prata para as orelhas, o nariz, os dedos dos pés e das mãos, colares de cintura, faixas para a cabeça trançadas com miçangas, tecidos de algodão nativo, de panos mais grosseiros a mantas, túnicas e albornozes da mais alta qualidade. […] Vemos, um pouco mais adiante, mulheres que restauram cabaças trincadas ou perfuradas.72
Na segunda imagem do mercado de Nyamina podemos ver, pendurados, diversos tecidos conhecidos como “panos de Ségou”, produzidos na região. Um relato de Emile Baillaud, publicado em 1902, explica:
Entre Bamako e Mopti encontra-se a área mais importante onde se trabalha o algodão. Os tecidos fabricados nessa parte do rio Níger recebem a denominação genérica de mantas ou panos de Ségou, sem dúvida porque Ségou é a cidade que mais faz intercâmbios com os diversos mercados do interior. Mas a cidade não tem de maneira alguma o monopólio da confecção desses tecidos, e é mesmo o local do Níger onde esses são menos fabricados. Parece que é de fato na margem esquerda do rio que a maioria das mantas e panos é produzida. Os lugares onde há maior número de teares são certamente Banamba, Nyamina e Sansanding. Os tecidos ditos “de Ségou” são todos tingidos com índigo. O mais comum é a “manta de Ségou”. O fundo é azul, ornado de listras brancas. Um desenho bastante adotado é o do xadrez com grandes quadrados.73
Nessa mesma fotografia vemos duas mulheres que, retirando material de cabaças, preparam esferas com as mãos. A legenda de Fortier para um outro postal da série (CGF 1098) explica que se tratam de vendedoras de “esferas de argila branca (espécie de branco da Espanha) para o uso das fiandeiras”. O produto, entretanto, não provinha da argila. Charles Monteil, na obra Le coton chez les Noirs, comenta: “Para facilitar o movimento do fio entre os dedos da mão direita, a fiandeira africana impregna-os com um pó branco fabricado com ossos calcinados pulverizados, depois aglomerados em pequenas esferas, que são vendidos em todos os mercados locais”.74
Três cartões-postais mostram, conforme anunciado nas legendas, as etapas do “trabalho do algodão nativo”.75 Não há indicação da cidade onde as fotografias foram feitas, mas, se levarmos em conta as informações de Emile Baillaud citadas acima, podemos supor que as atividades ocorriam em Niamini ou em seus arredores. Aparentemente o grupo trabalhava no mesmo lugar, já que podemos ver os urdumes esticados dos teares ao fundo da imagem que retrata as fiandeiras. Esses registros são bastante interessantes pois, além de destacarem as técnicas produtivas da região, trazem muitas informações sobre as relações sociais e as transformações em curso durante a passagem de Fortier pelo médio Níger.
A especialização e complementaridade do trabalho feminino e masculino são uma das características da atividade têxtil nessa região da África do Oeste, porém o que vemos nessas quatro fotografias é mais do que isso. O número de pessoas reunidas na oficina ao ar livre e a organização envolvida no processo indicam tratar-se de uma produção em escala comercial, e não uma atividade doméstica. Já mencionamos que no Sudão francês o ano de 1906 é marcado pelo grande êxodo de pessoas que abandonavam a condição servil e buscavam novas oportunidades de sobrevivência. Como muitos desses ex-escravos dominavam as técnicas de processamento da fibra ao tecido de algodão, é possível que as pessoas retratadas nessas fotografias fizessem parte do grupo.
Um trecho da obra Two Worlds of Cotton, de Richard Roberts, refere-se ao momento histórico então em curso e reforça essa hipótese:
Muitos homens e mulheres libertados, que quando escravos haviam aprendido a tecer e tingir, estabeleceram-se como artesãos e empreendedores autônomos. […] Uma vez que o investimento prévio para o início dessa atividade era relativamente baixo e a demanda por tecidos de fabricação local estava crescendo, ex-escravos conseguiam sobreviver os primeiros anos por conta própria. Para atender às novas oportunidades econômicas, tecelões e fiandeiras aumentaram suas atividades. Tecelões […] dependiam da produtividade das fiandeiras. A fiação era um dos gargalos do crescimento da produção de tecidos artesanais.76
É interessante notar que em todo o processo do “trabalho do algodão nativo” registrado por Fortier, apenas as cardas usadas pelas mulheres não são instrumentos de fabricação local. As cardas europeias, que facilitavam enormemente o trabalho e garantiam o incremento da produtividade, eram então um item importante das importações do Alto Senegal e Níger.77 Vemos também os teares simples e eficientes, em uso até hoje na região, que produzem as faixas de tecido que, unidas, se transform em panos e vestimentas. Ao serem retiradas dos teares, essas faixas são enroladas formando discos como os que vemos na cabeça do homem à esquerda do grupo.
Fortier incluiu três fotografias do processo de preparação da manteiga de karité na série Collection Générale. Assim como a transformação da fibra de algodão em tecido, a fabricação desse produto demanda intenso trabalho e pouco investimento prévio em materiais, ou seja: é a mão de obra intensiva o que conta. A árvore que produz a noz karité, da família das sapotáceas e batizada inicialmente como Butyrospermum Parkii em homenagem ao explorador escocês Mungo Park, que a descreveu, é endêmica na região geográfica compreendida no antigo Sudão francês, atual Mali. Às vezes crescendo em aglomerados, outras ocorrendo de modo esparso, ela fornece o óleo que era então, e ainda é, utilizado na alimentação e no cuidado do corpo por milhões de pessoas na África do Oeste. Como observou E. Annet, a árvore do karité:
“pode ser considerada, nessa parte da África tropical, como o equivalente da oliveira na bacia mediterrânea. A comparação é suficiente para demonstrar sua importância […]. Ela vive bem em climas com estações bem definidas e parece que o período de dormência da vegetação na época do vento desértico harmatã lhe é necessário”.78
Os meses que Fortier passou no Sudão, provavelmente entre meados de maio e início de julho, correspondem ao período de coleta do karité. Os frutos caem das árvores quando maduros e são recolhidos pelas mulheres. O tenente-coronel Parfait-Louis Monteil, que viajou de Saint-Louis do Senegal a Trípoli, no Mediterrâneo, passou em 1890 pela região de San, próxima à cidade de Ségou, no sul da atual República do Mali, e observou:
O karité é muito abundante e em todas as aldeias encontramos depósitos de nozes e fornos. A preparação se dá da seguinte maneira: no momento da colheita, os nativos consomem a polpa adocicada do fruto e enterram as nozes em covas, que são cobertas de terra molhada. Nessa situação a noz se conserva por muito tempo sem perder a forma; entrementes a oleosidade interior se concentra, endurece e pode ser facilmente separada da casca. Colocam-se então as nozes em um pilão para serem trituradas com o socador; a casca é descartada e a manteiga é prensada entre pedras planas. Essa manteiga esmagada é em seguida despejada em grandes recipientes de barro, que por sua vez são introduzidos num amplo forno; deixa-se cozer algumas horas e depois se moldam porções que são embaladas com folhas e assim a manteiga é armazenada por muitos meses.79
Devido às características da produção da manteiga de karité, na qual o trabalho é o maior valor investido, é possível que, como no caso do processamento do algodão, ex-escravos pudessem iniciar empreendimentos autônomos nessa atividade.
Ségou
Ségou, antiga capital do reino bambara fundado em 1712 por Mamari Culibaly, situa-se na margem direita do rio Níger. Em 1861, a cidade foi conquistada por Umar Tall e, em 1890, pelos franceses. No início do século XX, Ségou, cercada por áreas cultivadas, era um importante centro de comércio regional controlado por empreendedores africanos.
A figura acima mostra os alunos da escola pública regional de Ségou, fundada em 1904.80 À direita, com o casque blanc, vemos o professor europeu. Um decreto do Governo Geral da África do Oeste, que organizou o ensino laico nas colônias a partir de 1903, previa um quadro de funcionários de carreira franceses. Para o Sudão foram convocados preferencialmente professores que trabalhavam na Argélia, já familiarizados com alunos muçulmanos.81 Além do currículo oficial, a escola regional de Ségou oferecia aos alunos um curso de língua árabe.82
Nas cidades onde havia população islâmica, funcionavam escolas corânicas que atendiam milhares de alunos. Muitos se alfabetizavam em árabe e eram empregados pela administração colonial como tradutores e oficiais de justiça, já que a correspondência com os chefes locais era feita nesse idioma. Por esse motivo, era importante que os alunos da escola pública aprendessem também o árabe, além do francês.
Em 1903 a administração da metrópole também promulgou um decreto que reorganizava a justiça nas colônias que formavam a federação da África Ocidental Francesa.83 A chamada “justiça nativa”, a que estava sujeita a população africana, também foi alvo da reestruturação. O governo colonial, com a justificativa de separar os poderes político e judiciário, determinou que os tribunais regionais fossem compostos por três membros, sendo um deles o chefe local e os outros dois notáveis escolhidos pela administração francesa. Esses tribunais podiam decidir apenas assuntos de matéria civil e comercial e as decisões eram passíveis de recursos a instâncias superiores.
O júri que vemos no cartão-postal, composto apenas por africanos, com três membros, indica que se tratava de um tribunal regional. A vestimenta do chefe, dos notáveis e dos demais envolvidos no julgamento sugere que se tratava provavelmente de um tribunal regido pelas leis do grupo bambara. Processos encaminhados pelo código islâmico eram também previstos pelo decreto de 1903. O livro e as folhas de papel sobre a mesa do júri remetem às exigências impostas pelos colonizadores: “Os julgamentos nativos são fundamentados e devem conter o enunciado sumário dos fatos, as conclusões e declarações das partes, os depoimentos das testemunhas e os nomes dos juízes que participaram da decisão”.84
A grande mesquita de Ségou que vemos na imagem acima, reconstruída em 1900,85 era dirigida em 1906 pelo imã Abdul-Karim, da família somono Dyiré, já convertida ao Islã quando da conquista da cidade por Umar Tall. Os netos deste último, Muntaqa e Tidjani Tall, que viviam na cidade à época da passagem de Fortier, ocupavam respectivamente as funções de juiz do tribunal e intérprete da região de Ségou.86 A mesquita não sobreviveu até nossos dias.
Os cavalos de montaria da região de Ségou que vemos acima, de pequeno porte e adaptados à ecologia local, eram um símbolo de prestígio importante. Apenas membros da elite podiam arcar com os custos da criação desses animais nas zonas semiáridas do Sahel. Ajaezados, como os que vemos na fotografia de Fortier, os cavalos evocavam poder e riqueza.
Fortier fez talvez o registro mais antigo de uma apresentação dos kórèdugaw. Jean-Paul Colleyn, que escreveu sobre esses rituais, defende que chamemos as pessoas que deles participam de “bufões sagrados”, o que não seria pejorativo ou politicamente incorreto.87 Essas atuações satíricas ocorrem em áreas culturais variadas, e não apenas entre os bambara que vivem na região de Ségou.88 O caráter da performance pode passar despercebido se não observarmos a imagem com atenção. Um detalhe, porém, não deixa dúvidas de que se tratava de um grupo de kórèdugaw: o cavalo de madeira, emblema dessa sociedade, adornado com franjas e enfeites, pendurado nos ombros do homem à direita da fotografia. Sobre sua cabeça vemos o que parece ser um pássaro, parte da indumentária dos membros daquela associação. No centro, um outro homem dança com um fuzil fictício, enquanto um terceiro, coberto com um traje feito com hastes da planta cekala, tem nas mãos um chocalho. Como explica Colleyn:
[…]a planta cekala é um vegetal rijo e de alto porte que cresce perto dos riachos. Seu nome latino é cymbopogon giganteus, porém sua etimologia no idioma bambara é bastante explícita: ‘flecha do homem’. Em diversos rituais e provérbios da cultura popular, a haste de cekala simboliza a ressurreição e o pênis.89
Várias pessoas do grupo levam fileiras de sementes cruzadas no peito e músicos acompanham o ritual. Jean-Paul Colleyn escreve sobre os kórèdugaw:
[…]Personagens que adotam comportamentos transgressivos de maneira voluntária e que recorrem à provocação com grande arte, atingindo todo tipo de poderosos que, no entanto, não podem se mostrar ofendidos. As condutas aparentemente aberrantes dos bufões têm uma virtude catártica: elas fazem com que todos e qualquer um receba críticas e zombarias que, se emanassem de outras pessoas, seriam consideradas ofensas graves. […] censor da sociedade, [o kórèduga] diverte e imita o poder de modo grotesco. […] fingindo-se de louco, é um sábio, que julga o comportamento dos outros e desafia a solidez dos pactos e das convenções sociais. […] A particularidade dos kórèdugaw é a manifestação constante de sua marginalidade. Não se contentando em participar apenas dos grandes rituais e celebrações públicas, eles quase nunca cessam de brincar de infringir as regras.90
O motivo do cavalo fictício feito de madeira é uma provocação aos “poderosos” que montam os cavalos de verdade, como os que vimos na imagem anterior. Jean-Paul Colleyn explica ainda: “‘Cavalgar’ para os kórèdugaw pode consistir em parodiar os cavaleiros, mas a ação comporta inúmeros significados: é também uma alusão sexual, às vezes explicitada pelos cânticos”.91
As pessoas que vemos na figura acima, identificadas por Fortier como membros da população minianka, parecem fazer parte de um grupo semelhante aos kórèdugaw bambara. Entre os miniankas, os korduba desempenham o mesmo papel de bufões sagrados nos ritos de iniciação sociorreligiosos.92 Vemos na fotografia um homem, provavelmente o mestre, que leva sobre a cabeça os despojos de um calau, pássaro-símbolo dos bufões.93 Ele toca uma trompa feita com um chifre. Em seu ombro direito repousa o que parece ser um instrumento para cultivar a terra. Sua túnica é feita de fibras vegetais e os cinco neófitos estão vestidos com o mesmo material, que serve também para formar as cabeleiras postiças que usam presas a uma espécie de coroa. Esta, feita com conchas de caracol, é adornada por uma imitação de bico de pássaro. Os rapazes levam um chocalho de metal numa das mãos e na outra seguram um bastão de madeira em cuja parte superior está esculpida uma figura feminina, reconhecível pelos seios e penteado. Penduradas na coroa, três longas fileiras de contas feitas com sementes de duas cores diferentes, provavelmente vermelhas e brancas.94 A tiracolo eles têm o que parece ser uma pequena bolsa. Um deles porta chocalhos nos tornozelos.
As cristas Ciwaraw, já documentadas em Bamako, foram registradas mais uma vez por Fortier. No rito que vemos na figura acima – fotografia reproduzida em diversas publicações –, as Ciwaraw ganham ainda mais evidência. Youssouf Tata Cissé, em um artigo de 1995 sobre as máscaras bambara, mostra-a e, sem mencionar a autoria de Fortier, dá como informação: “BAMBARA (MALI). Região de Ségou? Máscaras masculina e feminina do tyi wara dançando ao som de tamborins diante de moças e de agricultores que cultivam um campo”.95
Acredito, como Cissé, que o episódio parece ter como cenário os arredores de Ségou, e que o grande rio que vemos ao fundo do cartão postal deve ser o Níger. A referência da legenda aos miniankas associa o registro ao cartão-postal anterior. Os trajes feitos com fibras vegetais usados por pessoas nas duas ocasiões são semelhantes. Há algo de artificial na imagem, que não tem o dinamismo das fotografias que Fortier fez em Bamako. Talvez o grupo estivesse posando, pois a disposição das pessoas no quadro fotografado parece ter sido uma composição para evidenciar os que portam as Ciwaraw. Esse destaque para as duas personagens permite que possamos compreender melhor a descrição de Colleyn:
O Ciwara aparece sob a forma de dois personagens mascarados, um macho, a outra fêmea, embora se afirme de modo enfático que o Ciwara é um único ser. A interdição, sob pena de morte, de andar ou dançar entre as máscaras masculina e feminina durante a apresentação ritual é um modo de atestar que essas duas máscaras são inseparáveis. Os espectadores têm diante de si um indivíduo no sentido etimológico do termo: um organismo que não pode ser dividido. Essa indivisibilidade afirma, por sua vez, a bissexualidade ideal de uma potência sobre-humana, ao mesmo tempo que, ao encarnar em dois entes mascarados, ensina à humanidade que a sobrevivência só é possível mediante a recomposição, por meio do amor (a sexualidade, a cópula), da unidade perdida.96
Sendo o Ciwara um rito agrário, é importante lembrar que ali a união simbólica dos princípios feminino e masculino tem como objetivo a fertilização da terra.
Diafarabé e Mopti
O edifício que aparece na figura acima foi descrito por Fortier como uma mesquita, porém suas características arquitetônicas indicam que se trata de um saho. Os saho são casas comunitárias construídas por jovens pescadores do grupo bozo, que as habitam durante a época dos ritos de passagem à idade adulta. Referindo-se aos bozos e aos saho, Sebastiano Pedrocco explica:
Lugar de antropogênese social onde os jovens solteiros vivem até o dia do matrimônio, que sanciona sua entrada no mundo dos adultos, a habitação comunitária ou saho representa um elemento típico dessa etnia. Nessa construção, os rapazes ficam em contato com moças com quem não têm laços familiares e que, por isso, não poderão tomar como cônjuge, pois a primeira esposa, escolhida pelos pais, deverá ter o mesmo patronímico (diamou). O saho, nos arredores dos acampamentos de pesca, é construído com palha, e no centro das aldeias é edificado com adobe. Símbolo de identidade cultural própria, ele se apresenta de forma majestosa e muito adornada nas margens do rio Níger, onde, desde tempos imemoriais, os contatos com outros grupos são mais intensos.97
Na construção registrada por Fortier podemos perceber os detalhes da decoração das paredes, típicas dos saho. Sergio Domian observa: “Na parte externa, os saho se distinguem das outras habitações pelos baixo-relevos, que representam símbolos fálicos ou antigos emblemas rituais cujo significado se perdeu.98
Labelle Prussin reproduziu em seu livro Hatumere uma fotografia datada de 1942 deste mesmo edifício e identificou-o como um saho. Segundo a autora, essa construção ficava na cidade de Diafarabé.99
Nas figuras acima vemos o que parece ser um acampamento temporário de população bozo, especialista da pesca em águas rasas. Na primeira fotografia, um homem está encostado numa piroga composta por duas partes idênticas costuradas no centro, tipo de embarcação construída e usada pelos bozos.100 À sua frente, estendidos no chão, panos secam ao sol. No segundo cartão-postal, vemos ao longe a fumaça das grelhas e, mais perto, os peixes dispostos sobre varas, para serem desidratados. No canto inferior direito estão crianças que participam das atividades familiares; no esquerdo, vemos uma rede de pesca pequena, como as utilizadas pelos bozos.
Jacques Daget, ictiologista e grande estudioso da região do médio Níger, explica a prática da pesca itinerante e da conservação do excedente:
De maneira geral, as aldeias de pescadores […] ficam afastadas das águas durante a vazante. Seus habitantes não hesitam em abandoná-las durante alguns meses e vão se instalar nos bancos de areia que emergem no leito menor do rio. […] Desse modo as mulheres têm o espaço necessário para secar os peixes e água em abundância para limpá-los, lavar a roupa e cozinhar. Os homens podem ficar perto de suas pirogas e de seus utensílios de pesca. […] Quando a pescaria é abundante, o excedente do que pode ser consumido ou vendido fresco é defumado ou seco. Isso constitui uma provisão alimentar destinada à venda ulterior ou ao consumo cotidiano101.
A pesca coletiva retratada por Fortier nas figuras acima, em que o rio Níger foi barrado de uma margem à outra por meio de uma rede, era praticada pelos membros do grupo somono. Diferentemente dos bozos, que formam o que se convencionou chamar de “etnia” e falam um idioma próprio, os somonos são uma categoria profissional à qual podem pertencer indivíduos de diversas populações. Num vocabulário corrente na década de 1940, Jaques Daget escreveu:
Esquematicamente, os bozos formam uma raça e os somonos, uma casta. Uma pessoa nasce bozo porém qualquer um pode tornar-se somono, desde que adote a profissão de pescador e se submeta aos costumes do grupo somono ao qual se integre […]. Os somonos não são, portanto, um grupo homogêneo do ponto de vista antropológico e nisso se distinguem dos bozos.102
Segundo Daget, como muitas vezes bozos e somonos vivem nas mesmas aldeias, “para identificá-los é necessário interrogá-los, ou melhor, observar a maneira como pescam. […] os somonos utilizam armadilhas e grandes redes enquanto os bozos são normalmente adeptos dos arpões e redes pequenas”.103
As cenas registradas por Fortier nas duas fotografias acima parecem retratar um tipo específico de pescaria descrito por Jacques Daget:
As grandes redes são em geral formadas por diversas partes reunidas, pois um pescador sozinho dificilmente conseguiria confeccionar uma faixa medindo de dois a quatro metros de altura por mais de cem de comprimento. Portanto, muitos deles se reúnem para dividir o trabalho e as despesas. […] A [grande rede é] utilizada para um tipo de pesca […] praticada apenas pelos somonos de Kuakuru e a montante de Kokri, no momento em que as águas atingem seu nível mais baixo. O rio é barrado por redes […], fixas com piquetes e lastreadas com grandes pedras presas às bordas inferiores […]. Essa barragem é montada de preferência onde o rio é pouco profundo, sobre um banco de areia. Ela é frequentemente reforçada por fora por pirogas, destinadas a recolher os peixes que conseguem saltá-la.104
Situada na confluência do rio Bani com o Níger, a cidade de Mopti foi originalmente erigida numa ilha, por pescadores do grupo bozo. Ao contrário de Ségou, onde havia poucos comerciantes europeus, em 1906 muitos franceses haviam fixado residência em Mopti, a meio caminho entre o terminal da estrada de ferro, em Koulikoro, e Timbuktu, a jusante no rio Níger.105 Da ilha, unida em 1902 por um pontilhão à margem direita do Bani, partia uma estrada que, passando por Bandiagara, chegava até Ouagadougou, capital da atual República de Burkina Faso, quinhentos quilômetros a sudeste. A cidade era assim um ponto estratégico para o comércio, que se beneficiava das vias fluviais e das rotas terrestres para atingir várias regiões ecológicas, produtoras e consumidoras de artigos diversos.
O rio Bani despeja no Níger um grande volume de água, rica em matéria orgânica e que, devido ao pouco declive do terreno, se espalha na planície formando o fenômeno geográfico conhecido como Delta Interior. As inundações sazonais fertilizam a área, tornando-a propícia à agricultura. No início do século XX, a região de Mopti produzia principalmente arroz e milhete. Grande parte da safra era exportada devido à demanda por cereais em outras áreas da então colônia do Alto-Senegal e Níger.106
Durante os meses da seca, parte do leito do rio Níger emerge. Esses trechos são cobertos por uma relva que permite alimentar os rebanhos num momento em que não há pastagem adequada em outras áreas. O sistema da transumância, no qual o gado é levado para zonas diferentes de acordo com as estações do ano e as chuvas, é até hoje praticado na região de Mopti. A convivência entre sociedades pastoris e agrárias, às vezes permeada por conflitos, é determinada por regras estabelecidas, que visam valorizar a interdependência e complementaridade das atividades.107
A rigidez da pose das duas figuras femininas à direita na fotografia acima contrasta com o gesto da terceira e o olhar da criança que esta leva ao colo. O brinco de metal retorcido, provavelmente de ouro, usado pela mulher ao centro, e os penteados enfeitados com conchas das outras duas foram descritos por Charles Monteil em seu estudo de 1903 sobre a região:
Quanto às joias de ouro, elas usam enormes brincos que causam o rompimento do lóbulo da orelha. Porém, como esse volume de ouro é adquirido aos poucos, à medida que uma diminuta quantidade é acumulada, a mulher encomenda a confecção de um pequeno aro que, para não se perder, ela prende no pavilhão auricular. Quando o número desses aros é suficiente, ela os faz fundir para ter apenas um grande par de brincos. […] Um ornamento muito frequente é um tipo de coroa branca (kolo), que se acredita ser uma proteção contra o mau-olhado. São presas ao pescoço ou nos cabelos e é comum o uso de várias. Essa coroa é elaborada com conchas marinhas das quais o fundo é recortado, o que demanda um demorado trabalho.108
Território dogon
Para chegar a Bandiagara Fortier se afastou pela primeira vez do vale do rio Níger desde que tomara esse rumo, em Siguiri, ainda na então colônia da Guiné francesa. Localizada no planalto, habitada originalmente por população dogon, Bandiagara tornou-se um dos centros de poder dos sucessores de Umar Tall.109 Conquistada pelos franceses em 1893, a cidade tinha, nos primeiros anos do século XX, cerca de 6 mil habitantes. Ponto de difusão importante das rotas do comércio regional Norte-Sul, a economia local se beneficiava do trânsito de mercadorias como o sal-gema e as nozes-de-cola.
Os mercadores que vemos acima, com seus animais de carga, provavelmente estavam passando por um processo de verificação do carregamento, um tipo de alfândega. Além dos impostos de capitação, os franceses também recolhiam uma taxa, única, de 10% ad valorem, conhecida como oussourou, sobre “todas as mercadorias importadas por caravanas pelas fronteiras do Sahel e do Saara” e na “importação e exportação […] sobre as mercadorias provenientes ou destinadas à Costa do Ouro britânica”.110 Nas rotas de comércio Norte-Sul, por onde trafegavam as placas de sal que vemos na imagem, os meios de transporte variavam conforme a ecologia. Os camelos não vivem bem fora das zonas desérticas e no Sahel a mercadoria era então passada para jumentos, que a carregavam nas zonas livres da mosca tsé-tsé. Bandiagara era um posto de fronteira nos caminhos que iam de Timbuktu à costa do golfo da Guiné.
Quando Bandiagara foi tomada pelos franceses, a conquista do Sudão ainda estava em curso. Prosseguiam as operações para derrotar Ahmadu Tall, herdeiro do Império Tucolor, que migrava para Leste, e contra as populações resistentes na região Timbuktu. Aguibu, outro filho de Umar Tall, ao contrário do irmão Ahmadu, optara por se submeter e se aliar aos franceses.111 Como recompensa, foi nomeado pelo coronel Archinard fama (rei) do Macina, um Estado-tampão criado pelos europeus entre o vale do Níger e as áreas insubmissas habitadas pelos dogon e mossi.
Em 1903, Bandiagara, que até então fizera parte do primeiro território militar da federação da África Ocidental Francesa, tornou-se sede de uma região com administração civil. O reino do Macina foi extinto por decreto e Aguibu passou a ser apenas um chefe honorário.112 Na imagem acima o vemos exibindo seus diversos símbolos de prestígio: uma cruz de guerra e a medalha da Legião de Honra (uma terceira condecoração está encoberta), a espada e as botas dos oficiais da cavalaria francesa.113 Nas mãos ele segura, além do chicote, as contas de rezar, que evocavam sua filiação a Umar Tall.
O palácio de Aguibu em Bandiagara, que vemos acima, encimado pela bandeira francesa, era um edifício imponente da cidade, construído em adobe e dotado de portas e janelas de madeira decoradas em estilo marroquino. Ferdinando Fagnola, que levanta a hipótese de que o palácio tenha sido erigido por iniciativa dos franceses, vê no edifício a materialização de um estilo híbrido, meio dogon e meio bozo, o que simbolizaria a política colonial de fazer de Bandiagara o centro de gravidade dos territórios do vale do Níger e do planalto:
Desde sua concepção, esse palácio foi um projeto metafórico que deveria significar – por sua fachada semelhante a uma ginna dogon, mas decorada como a arquitetura fluvial –, o ponto de encontro de dois mundos, o do rio e o da falésia. Para dar uma continuidade histórica à tradição local e expressar a vontade de ver coexistirem as duas religiões locais, o lugar de sua edificação foi escolhido nas proximidades do tógu-nà de Nangabanou Yorobougue Tembely, o lendário caçador dogon fundador de Bandiagara em 1770, mas também nas imediações da Grande Mesquita.114
Conquistadores sempre encontraram dificuldades para recolher impostos dos habitantes da região das falésias próximas a Bandiagara. Muito antes da chegada dos franceses, outros invasores haviam tentado impor, sem sucesso, tributos aos dogon, que lá vivem. Em 1910, Léon Peyrissac escreveu que essa população deveria ser admirada por “seu profundo apreço à liberdade, que sempre defendeu com tenacidade lutando contra os povos vindos do Norte, do Centro ou do Oeste africano”.115 Em 1903, a obrigação do pagamento do imposto de capitação, já vigente em grande parte da colônia do Alto Senegal e Níger, foi estendida aos dogon. Até então era o fama Aguibu quem determinava a taxação aos habitantes do “reino do Macina”.116
Em 1906, a percepção do tributo não ocorria sem incidentes, e a resistência dogon persistia em muitas áreas na região de Bandiagara. As cenas que vemos nos postais acima mostram o recebimento do imposto pago sob forma de faixas de tecido de algodão, produto que tinha valor de mercado em toda a colônia do Sudão e que podia ser usado pelos franceses no pagamento de salários de funcionários e soldados africanos. Normalmente, como vimos, depois de tecidas, as faixas eram enroladas. Nesses cartões-postais os tecidos estão dobrados em lotes, de maneira a facilitar a conferência de seu comprimento na presença dos contribuintes. Vemos nas duas imagens os militares africanos, membros da cavalaria das tropas coloniais. Na primeira, eles estão contando os feixes de faixas de algodão enquanto um administrador francês os observa. A maneira sudanesa de medir foi descrita pelo père Hacquard
Os panos têm medidas próprias: kala ou kamba (braças), normalmente calculados com os braços e algumas vezes com a ajuda de uma vara de 50 a 55 centímetros; sômbourousou, medida que representa 27 kala; bahinsa ou malikal-sahal, ou merdjaya, no valor de 40 kala; tôn, de 60 kala; staroura, de 65 kala”.117
Um enorme cesto feito com talos de milhete, como os que são até hoje produzidos por mulheres dogon, aparece pousado no chão entre as pessoas agachadas. Como os homens dogon, cuja principal atividade é a agricultura, costumam praticar a tecelagem durante as entressafras, podemos deduzir que o que vemos na imagem é parte do tributo pago por essa população aos franceses.
Na segunda imagem os cavaleiros do exército colonial aparecem escoltando a caravana que carrega o imposto in natura sobre a cabeça, provavelmente a destino de Mopti, de onde poderia ser transportado pelo rio Níger para outros locais.
Fortier fotografou as falésias de Bandiagara. Até então os franceses sabiam muito pouco sobre os dogon que lá habitavam, chamados de habbés118 por Fortier.
As falésias que se estendem por cerca de quatrocentos quilômetros entre Bandiagara e Hombori foram o bastião de diversos povos que resistiram a invasores e jihads. Os dogon, que migraram para a região por volta do século XIV, construíram suas aldeias no topo e na parte mais baixa das falésias, onde havia água e terreno para cultivar cereais. Casas e celeiros foram implantados no meio das rochas, o que dificultava as pilhagens, já que os cavalos não conseguem subir as escarpas, o que tornava as aldeias inexpugnáveis.
O vilarejo de Kori-Kori se situava no planalto que fica no alto das falésias. Segundo analise de Ferdinando Fagnola da figura acima, que retrata Kori-Kori, diversas construções isoladas aparecem como se constituíssem um único edifício.119 À esquerda da fotografia vemos um toguna que, entre os dogon, é o lugar de reunião dos homens mais velhos das comunidades.
A região conhecida como Macina corresponde às zonas sazonalmente inundadas dos rios Níger e Bani. Quando Aguibu Tall foi entronizado pelos franceses como fama (rei) do Macina, esse Estado se estendia pelas áreas montanhosas a leste de Mopti, e em nada correspondia ao Macina original. Fortier, influenciado pela terminologia inventada pelos colonizadores, nas legendas dos cartões-postais que retratam as falésias de Bandiagara refere-se a essa área como “Montanhas do Macina”.
Antes dos dogon, populações chamadas tellem habitaram as falésias. As aldeias dogon são muitas vezes implantadas em meio às antigas construções tellem e ambos os grupos utilizaram as grutas como locais de sepulturas.
A localidade que vemos na figura acima foi identificada por Fernando Fagnola, que reconheceu a formação montanhosa, ao fundo da fotografia de Fortier, como sendo Kani Bonzon, próxima à planície que se estende aos pés da falésia.120
Os chefes dessa aldeia, próxima de Bandiagara, haviam se aliado aos franceses desde o início do período colonial.121 É provável que as cenas de dançaque vemos nas figuras abaixo tenham ocorrido em Kani Bonzon, já que ali os franceses eram bem recebidos.
Vemos nesses três cartões-postais instrumentos de percussão, sendo um deles um tronco que fica apoiado sobre os pés dos músicos que o tocam com varetas. Também nas três fotografias aparece um homem, o único do grupo, que usa um traje confeccionado com tecido europeu ornado com uma fileira de botões. Talvez fosse o chefe da aldeia. As outras pessoas vestem roupas feitas com os tecidos de algodão fabricados localmente, alguns tingidos com índigo. Os registros da dança fotografada por Fortier fazem pensar que ele usava negativos de um filme de rolo, mais sensíveis e que permitiam captar sequências de movimentos. Na última figura vemos no chão a sombra dos bailarinos, cujo salto foi fotografado em pleno zênite do sol.
Os rapazes que aparecem no cartão-postal acima usam enfeites elaborados com cauris presos aos cabelos e portam adereços nos braços. São provavelmente braceletes feitos com o mármore extraído das montanhas da região de Hombori, de cor preta com filetes brancos, apreciados por pessoas em toda a área que se estende entre Timbuktu até Ouagadougou. Calças de tecido artesanal de algodão, um pano de longas franjas amarrado nos quadris, pequenas bolsas de couro, colares em forma de amuletos, cinturões e tiras nas têmporas compõem a indumentária dos jovens dogon fotografados por Fortier
No início do século XX, animais selvagens, como elefantes, leões, panteras, antílopes e gazelas ainda viviam na imensa planície que se estende a leste das falésias de Bandiagara. Os mossi, população majoritária da atual República de Burkina Faso, eram hábeis caçadores que nas épocas propícias percorriam grandes extensões em busca de presas.
Numa figura vemos um cavaleiro, possivelmente o líder do grupo, que leva uma espada às costas, um fuzil apoiado nas pernas e tem nas mãos uma lança. Em sua cabeça podemos identificar alguns amuletos. Os demais membros da equipe portam arcos, flechas, facas e pequenos machados. Quase todos usam os braceletes feitos com mármore que vimos também portados pelos dogon. À direita, um homem sopra uma trompa. À esquerda, está o caçador que foi retratado individualmente e aparece no outro postal, identificável por sua grande bolsa de couro franjada. Embora a legenda da figura mencione a região de Hombori, não existem outros registros do fotógrafo daquela área, bem mais ao norte.
As mulheres que vemos acima, portando grande variedade de adornos, eram provavelmente pessoas privilegiadas. Entre os fulas, grupo que se dedica principalmente ao pastoreio, esse tipo de penteado feminino denota prestígio. As grandes cristas formadas com os cabelos impediam as mulheres que as usavam de carregar objetos na cabeça. Assim, o serviço doméstico de transportar água e lenha era feito por outras pessoas. Penteados semelhantes eram usados por mulheres fulas em várias outras regiões da África do Oeste, principalmente na área montanhosa do Fouta Djalon na então colônia da Guiné francesa.
NOTAS
61 Sobre esse evento, ver KLEIN, Martin e ROBERTS, Richard, “The Banamba Slave Exodus of 1905 and the Decline of Slavery in the Western Sudan”, Journal of African History, 21, 1980, pp. 375-94, e KLEIN, M., 1998 (a), pp. 159-77.
62 Cf. LOVEJOY, Paul e KANYA-FORSTNER, A.S. (orgs.) Slavery and Abolition in French West Africa. The Official Reports of G. Poulet, E. Roume, and G. Deherme. Madison: University of Wisconsin-Madison, 1994, p. 4: “A característica mais surpreendente da escravidão na África do Oeste […] era a enormidade da escala [em que era praticada]. No final do século XIX, em muitas partes da savana e do sahel, os escravos constituiam mais de metade da população e em alguns distritos essa proporção parece ter sido ainda maior. […] A incidência da escravidão estava certamente relacionada às mudanças nos destinos políticos do sistema de Estado endógeno, e as tremendas convulsões do século XIX, incluindo a própria conquista francesa, claramente resultaram na escravização de números cada vez maiores de pessoas”.
63 A respeito da posição dos administradores franceses frente à prática escravagista na África do Oeste, ver LOVEJOY, P. e KANYA-FORSTNER, A.S., 1994. Sobre a mesma questão no Sudão, KLEIN, M. e ROBERTS, R., 1980, e KLEIN, M., 1998 (a) pp. 126-40. Sobre as Villages de Liberté, instituição criada pelos franceses para acolher escravos que fugiam, ver BOUCHE, Denise, Les villages de liberté en Afrique noire française, 1887-1910. Paris: Mouton, 1968. Em geral, apenas os ex-cativos de chefes inimigos eram acolhidos nesses locais. Os demais, muitas vezes eram devolvidos a seus “donos”.
64 KLEIN, 1998 (a), p. 136.
65 Idem, p. 140.
66 Idem, p. 170-173.
67 Ver VILLIEN-ROSSI, 1966, p. 289. Esses dados se referem ao ano de 1908.
68 Ver Gouvernement général de l’Afrique occidentale française 1905, p. 35.
69 Ver LÉOTARD, 1906, p. 219.
70 A obra clássica sobre esse ritual é ZAHAN, Dominique, Antilopes du soleil: arts et rites agraires d’Afrique noire. Viena: A. Schendl, 1980. Para uma visão abrangente das instituições e arte bamana, ver COLLEYN, Jean-Paul (org.), Bamana, the Art of Existence in Mali. Nova Iorque: Museum for African Art, 2001. Sobre os ritos Ciwara na atualidade, ver WOOTEN, Stephen, The Art of Livelihood, Creating Expressive Agri-Culture in Rural Mali. Durham: Carolina Academic Press, 2009.
71 MAGE 1868, p. 186.
72 Idem, p. 187-188.
73 BAILLAUD 1902, p. 67.
74 MONTEIL 1927, p. 52, nota 1.
75 Charles Monteil (1927, p. 51-52) descreve em detalhe todo o processo de fiação e tecelagem artesanais do algodão.
76 ROBERTS, 1996, p. 94.
77 Idem, p. 97. Os dados fornecidos por Roberts sobre a importação de cardas no Sudão, segundo os quais estas representariam o nono lugar em termos de valor, referem-se ao ano de 1917. Certamente o fluxo já era importante antes dessa data. Cf. também MONTEIL, Charles, Monographie de Djénné, cercle et ville. Tulle: Imp. Mazeyrie, 1903, p. 228. Entre os artigos considerados de primeira necessidade, Charles Monteil inclui as cardas manuais, importadas dos Estados Unidos e vendidas a 4 francos o par.
78 Ver ANNET 1930, p. 913.
79 Ver MONTEIL 1895, p. 41-42.
80 Ver SIMONIS, 2005 (b), p. 46.
81 Ver LÉOTARD 1906, p. 193. Os trajes dos rapazes que vemos na imagem indica que eram muçulmanos, embora grande parte da população do cercle de Ségou não professasse o Islã.
82 Ver Gouvernement général de l’Afrique occidentale française 1905, p. 21.
83 Ver Gouvernement général de l’Afrique occidentale française 1903, p. 883. Sobre a chamada “justiça nativa”, ver pp. LV a LVIII.
84 Gouvernement général de l’Afrique occidentale française 1903, p. lviii, artigo 70.
85 PÉRIGNON, 1901, p. 188.
86 Sobre as famílias muçulmanas de Ségou, ver MARTY, Paul, Études sur l’Islam et les tribus du Soudan. Paris: Ed. E. Leroux, 1920, tomo IV, pp. 53-59.
87 COLLEYN, 2010, p. 25.
88 Idem
89 Idem, p. 14.
90 Idem, p. 25, 29-30.
91 Ibid., p. 20.
92 Cf. JASPER, Philippe, “Signes graphiques minyanka”, in Journal des africanistes, vols. 49-1, 1979, p. 74, e COLLEYN, Jean-Paul, “Sur le chemin du village: L’Initiation au Koro Minyanka”, in Journal des africanistes, vols. 45-1-2, 1975, p. 121.
93 COLLEYN, 2010, p. 14.
94 Idem, p. 57. O autor menciona que os bufões da sociedade iniciática do jo usam fileiras de sementes dessas cores.
95 CISSÉ, 1995, p. 180-181.
96 COLLEYN, 2010, p. 59.
97 PEDROCCO, Sebastiano, « Il saho : la casa comune dei giovani bozo », Africa : rivista trimestrale di studi e documentazione dell’Instituto italiano per l’Africa e l’Oriente, vol. 58-2, 2003, p. 178, adaptado.
98 Ver DOMIAN, 1989, p. 164.
99 Ver PRUSSIN, 1986, p. 133.
100 Ver CHAMPAUD, 1961, p. 7-11.
101 DAGET, 1949, p. 53, 59-60.
102 Idem, p. 13.
103 Idem, ibidem.
104 Idem, p. 20 et 23.
105 Ver DUBOIS, 1911, p. 147-148.
106 Idem : “Em Mopti cem quilos de arroz descascado valem de 7 a 8 francos, e cem quilos de milhete, de 3 a 4 francos. Em Koulikoro, ponto final da ferrovia, os preços desses cereais passam a ser, respectivamente, 25 e 12 francos”.
107 Muitas dessas regras foram codificadas durante a época da Diina, Estado teocrático fundado no século XIX por Seku Ahmadu na região. Sobre o tema, ver BÂ, Amadou Hampâté e DAGET, Jacques, L’Empire peul du Macina (1815-1853). Paris: Mouton, 1962.
108 MONTEIL, 1903, p. 122-123.
109 Para uma descrição da cidade e seu cotidiano na época da visita de Fortier, ver BÂ, Amadou Hampâté, 2003.
110 Gouvernement général de l’Afrique occidentale française 1905, p. 34.
111 Aguibu justificava sua traição ao irmão por esse ter-lhe roubado esposas e cativos. Cf. SAINT-MARTIN, Yves, “Un fils d’El Hadj Omar: Aguibou, roi du Dinguiray et du Macina (1843 ? 1907)”, in Cahiers d’études africaines, v. 8, n. 29, 1968, p. 152.
112 Idem, p. 175-176 e LÉOTARD, 1906, p. 185.
113 Yves Saint-Martin (1968, pp. 165-66) comenta o fascínio de Aguibu pelos artigos franceses: “Archinard […] trouxe da França presentes para Aguibu, em particular seis cadeiras escolhidas junto com Gallieni, e de acordo com os conselhos desse, pensando assim satisfazer a predileção do príncipe tucolor pelo mobiliário europeu. […] o sultão de Ségou foi traído por seu irmão mais novo por seis cadeiras ‘requintadas’ compradas na loja Dufayel”. Em 1900 Aguibu, acompanhado de sua esposa Fatimata e de seu filho mais novo Moktar, visitou a Exposição Universal em Paris. Ele desembarcou em Bordeaux em 19 de agosto. Aguibu esteve também em Versailles, Chartres e Marselha. Ver CHARLES-ROUX, Jules, Exposition Universelle de 1900. Les colonies françaises. L’organisation et le fonctionnement de l’exposition des colonies et pays de protectorat. Paris: Imp. Nationale, 1902, pp. 228-29.
114 Ver FAGNOLA, 2009, p. 266-267.
115 PEYRISSAC, 1910, p. 200.
116 Escrevendo do ponto de vista dos franceses, Léon Peyrissac informou que os dogons, antes da colonização, “pagavam ao sultão do Macina um imposto muçulmano, o ackour, dízimo cobrado sobre os cereais em condições deveras vexatórias e injustas, já que os coletores penalizam não apenas as aldeias, como também cada indivíduo em particular, arrecadando para seus superiores e para si mesmos”. PEYRISSAC, 1910, p. 204.
117 Ver HACQUARD, 1900, p. 56.
118 Habbé (sing. kado) é um termo pejorativo, significando pagão ou não islamizado, pelo qual os fulas (conhecidos como peul pelos francófonos e fulani pelos anglófonos) nomeavam os dogons.
119 Ver FAGNOLA, 2009, p. 129.
120 Idem, p. 136-146.
121 Idem, p. 201-202.