EDMOND FORTIER > A Guiné
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  • IMAGENS COMENTADAS 1900-1904

    A Guiné

    Na época dos primeiros registros feitos por Fortier na região, por volta de 1900, a Guiné Francesa era uma colônia recentemente criada, pois sua autonomia administrativa em relação ao Senegal data de 1890.41 O território chamara-se Rivières du Sud até 1893, em alusão aos vários cursos d’água e estuários que pontilhavam seu litoral e que, permitindo a passagem de pequenas embarcações, serviam de rota de penetração para comerciantes europeus que ali chegavam por via marítima. Até a década de 1880 essas incursões não avançavam além da planície costeira e todo o interior, de onde provinham os produtos que interessavam aos franceses, estava sob domínio africano. Originalmente, as rotas comerciais mais importantes nas regiões que viriam a constituir a colônia da Guiné Francesa (hoje República da Guiné ou Guiné-Conakry) funcionavam no sentido Norte-Sul, unindo os povos do vale do rio Níger às florestas. O principal produto vindo do Norte era o sal-gema do Saara, enquanto o Sul fornecia as nozes de cola, muito consumidas em toda a África do Oeste devido às suas  propriedades estimulantes e também usadas nas trocas que permeiam até hoje as relações sociais. Essa rede comercial que se estendia por milhares de quilômetros e se beneficiava da complementaridade ecológica das regiões  era percorrida por vendedores ambulantes (colporteurs) e caravanas de transportadores conhecidos como diúlas.

    As rotas leste-oeste, que levavam os produtos do interior para serem comercializados com os europeus estabelecidos nas regiões costeiras, eram  secundárias até o início do ciclo da borracha (caoutchouc),42 na década de 1870. O valor do quilo do caoutchouc era alto o suficiente para compensar o custo do transporte por caravanas que vinham das áreas mais produtivas do leste. Em 1890, esse produto compunha 62%da pauta de exportação da colônia e, até a crise de 1913, era a monocultura característica da região.43

    Em 1899, com a partição da colônia do Sudão Francês, uma extensa área na margem direita do rio Níger foi anexada à Guiné44 A consolidação geográfica definitiva da colônia só ocorreu em 1904, com a incorporação das Ilhas de Los, muito próximas à capital Conakry, recebidas mediante acordo com a Grã Bretanha.

    Talvez essas variadas configurações e denominações que se sucederam na época em que Fortier começava a fotografar na Guiné tenham sido o motivo para que as primeiras imagens da região editadas por ele no formato cartão-postal fossem identificadas ora como Senegal, ora como Senegal-Guiné ou mesmo Sudão. Posteriormente Guinée Française passa a ser o padrão nas legendas.

    Dubreka e o Kakoulima
    Chegada de uma caravana de carregadores

    O monte Kakoulima, com 1003m. de altitude, na primeira das fotografias acima, é um acidente geográfico importante separando as regiões costeiras da Guiné-Conakry do maciço montanhoso do Fouta Djalon a leste. A seus pés fica a cidade de Doubreka. Essas imagens parecem fazer parte do primeiro grupo de registros feitos pelo fotógrafo na então Guiné Francesa, que são anteriores ao ano de 1900. Dubreka, onde estavam instalados estabelecimentos franceses, chegou a ser um centro comercial importante antes do predomínio definitivo da capital Conakry, localizada a 30 quilômetros dali.  Ainda nesse primeiro cartão-postal vemos os detalhes da arquitetura da população soussou, com as casas arredondadas de barro com varandas encimadas por um teto de palha. No meio das habitações, à esquerda, há uma construção de estilo europeu.

    A segunda imagem, feita no mesmo local porém identificada com o Sudão, registra a chegada de uma caravana, provavelmente num estabelecimento comercial francês. Odile Goerg explica: “A chegada dos produtos do interior à costa se dava fosse por meio de uma rede complexa, controlada pelos carregadores – não havia europeus no interior – fosse por um sistema de etapas que implicava a existência de mercados de contato. Isso se fazia por caravanas, forma obrigatória de deslocamento devido à insegurança das estradas. A composição das caravanas era variável: camponeses indo à costa durante a estação seca, escravos empregados por seus donos como carregadores ou ainda diúlas agrupados. As caravanas seguiam rotas conhecidas, demarcadas por escalas onde encontravam alojamento e alimentação. Elas eram acompanhadas às vezes por um músico, normalmente um percussionista, encarregado de manter o ritmo da marcha, e de mulheres provisionadas dos utensílios necessários à preparação das refeições”.45

    CONAKRY

    As orações conduzidas pelo Almamy
    A festa da Korité

    As duas imagens acima, aparentemente registros do mesmo evento, também são anteriores a 1900 e, no canto direito inferior da segunda, podemos identificar a marca EF que indica essa datação. A cerimônia conduzida pelo chefe religioso, o Almamy, celebra o fim do mês do Ramadã do calendário muçulmano. A “Korité” (denominação que na África do Oeste recebe o Aïd al-Fitr) é uma data festiva que encerra o jejum diurno imposto aos crentes durante o Ramadã. Segundo Philippe David vemos nessas imagens o Almamy Mori Sékou, que celebrava a prece no pátio de sua residência em Conakry.46

    Na primeira fotografia, bengalas e chapéus de estilo ocidental, impróprios para os movimentos requeridos nas orações islâmicas, estão pousados junto à mureta da construção. Na segunda imagem, chamam à atenção os homens na segunda fileira, com trajes que indicam condição social inferior aos demais. Um sinal da carência de seus recursos materiais é a folha de palmeira usada por um deles à guisa de “tapete de oração”, enquanto outros três, no início da fileira, se aglomeram sobre algo que parece ser um pedaço de couro.

    A cidade colonial de Conakry, da mesma maneira que Dakar, foi erigida na ponta de uma península e sobrepôs-se a pequenas aldeias africanas pré-existentes.47 Até a década de 1880, o controle da costa atlântica entre a entre a então colônia da Guiné Portuguesa (hoje República da Guiné-Bissau) e Serra Leoa (à época possessão colonial da Coroa britânica), era disputado por franceses, ingleses e alemães. Casas comerciais dos três países estavam estabelecidas no litoral e nas margens dos rios que lá desembocavam. Mediante tratados celebrados em 1882 e 1889 com a Grã-Bretanha e em 1885 com a Alemanha, a França passou a ser o poder europeu que dominava a região. O grande desafio para os franceses era conseguir encaminhar para a zona costeira sob seu controle as caravanas que traziam do interior o caoutchouc, lucrativo produto de exportação. As rotas tradicionais que partiam das regiões onde o látex era extraído, quando se dirigiam ao sul, atingiam a costa na altura de Freetown, na Serra Leoa inglesa. Era também inglesa a procedência da maioria dos artigos europeus usados nas trocas pelo caoutchouc. Desviar esse fluxo comercial para a esfera francesa foi a principal motivação da administração no início do período colonial que se inicia formalmente em 1890.

    A partir de 1880 por meio de tratados com as autoridades africanas locais e em  1887 mediante anexação, os franceses se apossaram da península de Toumbo, onde havia uma aldeia com o nome de Conakry. Esse local estratégico, que permitia a construção de um porto para receber vapores e concorrer com Freetown, fora escolhido pelos franceses para ser a sede administrativa e capital comercial da nova colônia. Apesar da existência, além de Conakry, de outras três aldeias na península, em 1890 os franceses traçaram um plano urbanístico para o local, que seria recortado por vias perpendiculares sem levar em conta as construções africanas. A cidade foi dividida em lotes,que podiam ser solicitados para uso e posteriormente adquiridos. Muitos comerciantes, tanto europeus como serra-leoneses, senegaleses e sírio-libaneses, entre outros, candidataram-se aos terrenos.

    Konakry – O cais
    Konakry – Entrada
    Konakry
    Konakry

    As quatro imagens acima retratam Conakry por volta de 1900. Na primeira vemos o cais, ainda não preparado para receber vapores, onde estão acostados veleiros que provavelmente serviam às casas comerciais instaladas na cidade. O porto era ligado ao centro da cidade por meio de trilhos estreitos tipo Decauville, por onde circulavam pequenos vagões empurrados pela mão de obra africana, como mostrado no segundo postal.48 Os principais entrepostos e lojas foram construídos numa das novas avenidas, que aparece na terceira das fotografias. O calçamento ainda não fora feito, mas podemos ver na imagem dois postes de iluminação a petróleo. A arquitetura das casas segue o padrão colonial, com o estabelecimento comercial no nível da rua e a moradia dos funcionários no andar superior avarandado. Foi provavelmente de um parapeito dessas casas  que Fortier registrou essa cena. Na última imagem vemos, também fotografado do alto,  um panorama de parte da cidade. A vegetação nativa domina a cena, mas no canto inferior esquerdo podemos ver as mangueiras plantadas ordenadamente que ladeiam as ruas, seguindo o plano imposto pelos franceses ao local. A maioria dos terrenos ainda está vago porém nos anos seguintes a cidade tornar-se-á cada vez mais importante e populosa. Na virada do século XIX para o XX Conakry já canalizava 90% do comércio exterior da colônia, em detrimento de Freetown.49

    NOTAS

    41 Para a colônia da Guiné francesa no período abordado aqui (entre o final do século XIX e o início do século XX) ver  GOERG, O., Commerce et Colonisation en Guinée (1850-1913), Paris, L’Harmattan, 1986.

    42 O látex produzido na região provinha de um cipó da espécie Landolphia Heudelotii do gênero landolphia.

    43 Segundo GOERG, 1986, p. 109: “Esse novo ciclo comercial iniciou-se com duas deficiências: a qualidade medíocre em comparação ao látex extraído das hevéas e a baixa produtividade pois era preciso percorrer vastas áreas para encontrar lianas dispersas. O sucesso desse produto só podia portanto se justificar no contexto de uma economia de pilhagem na qual o custo da mão de obra era negligenciado”.

    44 No desmembramento do Sudão Francês couberam à Guiné os cercles (unidades administrativas coloniais) de Kouroussa, Siguiri, Kankan, Beyla e Kissidougou.

    45 GOERG, O., 1986, pp. 50-51

    46 DAVID, P., “La carte postale guinéenne de 1900 à 1960, inventaire technique et culturel provisoire”, Notes Africaines, n. 189, 1986, p. 14.

    47 Sobre a fundação da cidade de Conakry ver GOERG, O., “Conakry: un modèle de ville coloniale française? Règlements fonciers et urbanisme, de 1885 aux années 1920” in Cahiers d’études africaines, vol. 25, n.99, 1985, pp. 309-335 e GOERG, O., 1997, vol. I, Genèse des municipalités.

    48 Segundo Odile Goerg (1986, pp. 261-262), “Por iniciativa de duas casas de comércio, a partir de 1897 trilhos Decauville ligavam o porto ao bairro comercial. Essa via de 0,5 m de largura, onde circulavam vagonetes empurrados por empregados, substituiu o transporte humano e a utilização de charretes que precisavam do trabalho de 5 a 6 homens para levar uma carga de 100 a 200 kg. A via foi melhorada e assumida pelo governo que recebia uma taxa fixa de 1 franco por tonelada; cada casa comercial fornecia seus próprios veículos e trabalhadores. Em 1902, ela se estendia sobre um total de 9,7 km e permitia o abastecimento dos armazéns; ela trazia ao mesmo tempo rendas significativas para Conakry, já que em 1908 e 1909 os direitos recebidos alcançavam 41% e 46% das receitas da cidade”.

    49 Cf. GOERG, O., 1986, p.258.