Os retratos eram uma especialidade de Fortier. No início da carreira ele registrava as elites locais, tanto as negras, quanto as mestiças e europeias, e produzia cartes de visite ou cartes cabinet, que eram trocadas entre familiares e amigos. Representantes das elites africanas posaram em seu studio e outras pessoas foram fotografadas em seus afazeres. Fazia também as fotografias dos chamados types, num exercício, bem de seu tempo, de documentar as diferentes sociedades que habitavam o Senegal.
Essas três jovens acima, associadas por Fortier à cidade de Dakar, posaram tendo ao fundo o cenário que fazia parte do studio que, como vimos anteriormente, o fotógrafo dividia com Noal na cidade de Saint-Louis entre os anos 1898 e 1900. As jovens são, de certo, pessoas da elite senegalesa. Isso é perceptível nas suas roupas e adornos. As três usam joias requintadas, entre elas colares e pulseiras feitos por artesãos locais. A joalheria senegalesa era muito admirada pelos franceses e foi um dos itens que o pavilhão do Senegal apresentou na Exposição Universal de 1900, época provável dessa fotografia.3 As vestimentas das moças mostram uma prática cultural que caracteriza a região: elementos importados, como os tecidos industriais europeus de suas túnicas, são usados com panos de fabricação local, como os das saias e xales. As africanas incorporam os novos materiais estrangeiros à sua vestimenta, mas guardam sua maneira própria de vestir. Os padrões complexos dos tecidos artesanais no vestuário das moças indicam ter sido feitos por profissionais qualificados.
Os tecidos industriais, tanto os de alta qualidade, como os adamascados, quanto os de tipo inferior, como as chamadas guinées, eram, na época, o mais importante item de importação do Senegal4. O colonialismo do século XIX teve como um de seus motores a necessidade de novos mercados para a produção industrial europeia.
Esse comerciante foi fotografado no studio Noal-Fortier de Saint-Louis. A legenda do postal identifica-o com o Cayor. O antigo reino do Cayor estendia-se pela costa e por uma faixa da região interiorana em toda a extensão entre a cidade de Saint-Louis e a península do Cabo Verde. Quando, em 1886, após grande resistência, o reino foi definitivamente anexado e extinto pelos franceses, a região já produzia em grande escala os arachides (amendoim). Essa leguminosa era o artigo de exportação mais importante da colônia, tendo substituído a goma arábica que ocupou esse posto até a década de 1880. Embora grandes firmas de Bordeaux fossem cada vez mais importantes no seu comércio, empresários africanos eram membros ativos nas transações.5 O retratado era um homem da elite comercial senegalesa e sua indumentária é prova disso. Ele traja um boubou (túnica) de tecido artesanal e um xale aparentemente tingido com desenhos geométricos. O pingente tubular que carrega mostra que é um adepto do Islã, pois receptáculos como este são usados para conter versos do Corão. Seu chapéu cônico adornado de plumas de avestruz, o calçado e a bolsa de couro são produtos de qualidade do artesanato local.
Um líder africano aparece na primeira imagem acima acompanhado por seu griot, numa cena evidentemente posada, porém num ambiente externo. Ao fundo está um cavalo, e as botas de montaria e o chicote do personagem indicam ser ele seu proprietário. O Senegal era então conhecido pelo desenvolvimento de raças equinas adaptadas ao meio ambiente, numa época em que a montaria era um importante meio de transporte.6 O traje do chefe aparenta ser feito com tecido de seda e o abotoamento assemelha-se aos de vestimentas usadas no Norte da África. No seu peito vemos um adorno provavelmente de prata. Sentado a seu lado, demonstrando uma condição inferior na escala social, está seu griot, munido do instrumento de cordas khalam. Os griots são tradicionalmente músicos profissionais membros de grupos endogâmicos e formavam parte do séquito de pessoas da elite. Artesãos da palavra, uma de suas missões era garantir, por meio da música e do canto, o equilíbrio emocional de seus patronos.7 Na segunda fotografia vemos um outro griot fotografado no mesmo local da imagem anterior. Seu instrumento é a kora, um tipo de harpa.
A atividade de pilar era essencial na economia doméstica, inclusive urbana, do Senegal no início do século XX. A alimentação da maioria da população tinha como base o milhete, cereal nutritivo e adaptado ao clima da região, que deve ser consumido logo após a moagem para não se tornar amargo. As pileuses formavam a maior parcela da força de trabalho feminina. Chamam a atenção as fileiras de grigris, um tipo de amuleto, usado pela personagem à direita na fotografia. A mulher sentada ao centro masca um sothiou, haste vegetal usada para limpar os dentes, e o lenço em sua cabeça indica que era casada. O Dr. Jojot, que vivia na época em Dakar, comenta: “Jeunes filles, elles vont tête nue; mariées, elles s’enveloppent la tête d’un mouchoir de couleur voyante ‘nioumbeull’”. 8
Esses três cartões postais mostram etapas da atividade têxtil no Senegal do início do século XX. Na primeira fotografia, como boubou flutuando ao vento, um homem é identificado como fileur embora não esteja fiando (o que é uma prática essencialmente feminina na África do Oeste) e sim enrolando fios já prontos em uma bobina. No centro, uma imagem da cidade de Joal mostra no canto inferior esquerdo um homem que prepara o urdume utilizando uma cerca como guia para seus fios. O terceiro postal registra dois tecelões em atividade. A tecelagem de faixas, difundida por toda a África ocidental, continuou importante apesar da concorrência dos tecidos industriais importados. Os tecelões, como outros artesãos, faziam parte de grupos endogâmicos de especialistas na divisão social do trabalho.9
Fortier registrou as populações serer por volta de 1904, durante sua passagem pela região dos rios Sine e Saloum no Senegal. Predominantemente agricultores, os serer eram então produtores importantes de arachides sem contudo deixar de cultivar os itens, como o milhete, que garantiam sua autossuficiência alimentar.10
O recipiente de barro com o bocal pequeno carregado pela mulher parece ser um eficiente meio para transportar água. Nas sociedades dessa região o trabalho com o barro (a poterie) é uma atividade reservada às mulheres.
As imagens retratando os personagens envolvidos na Rébellion de Thiès, nove no total, formam um conjunto documental. O evento, de 7 de abril de 1904, refletiu as contradições e impasses nas relações entre os colonizadores e chefes africanos.11 Os franceses, durante muito tempo tolerantes com a prática local de manter pessoas escravizadas como propriedade de indivíduos, passaram a instituir regras para abolir o sistema. No início do século XX a chamada “escravidão doméstica” (em referência aos captives de case) era comum, embora o tráfico de pessoas fosse proibido. Os líderes da revolta em questão foram dois chefes da região do Baol, Diéry e Canar Fall, acusados de rapto e venda de crianças, inconformados com a pena de prisão imposta pelas autoridades francesas. Durante a rebelião o administrador Chautemps, filho de um ex-ministro das colônias, foi assassinado. A captura e decapitação do responsável pelo início da rebelião, Diéry Fall, teria sido praticada por ordens de seu primo Canar Fall. A cabeça e o braço de Diéry foram entregues aos franceses que decidiram expor na praça de Thiès os despojos espetados em uma vara para “servir de exemplo”.12 O registro feito por Fortier imortalizou a cena macabra que teria durado apenas uma hora, segundo os responsáveis. A imagem circulou causando indignação na imprensa anticolonial metropolitana.13
Os quatro envolvidos na revolta que aparecem no postal reproduzido acima foram fotografados durante seu julgamento em Dakar, em maio de 1905.14
NOTAS
3 Ver CHARLES-ROUX, J., Exposition Universelle de 1900 – Les Colonies Françaises – Introduction générale, Paris, Challamel Ed., 1901, pp. 27-30. O autor reproduz uma matéria do jornal Le Temps onde se lê: “Defronte o palácio do Senegal e do Sudão as lojas de africanos atraem os curiosos. Ourives e bordadores nos vendem as mercadorias que fabricam. Dizem que foram escolhidos em Saint-Louis, após um concurso entre os mais hábeis (…) Suas joias são de uma rara delicadeza” Mais à frente escreve: “No entanto, os únicos que fizeram negócios consideráveis foram os joalheiros, aos quais o público fez encomendas e compras importantes”.
4 Ver “Tableaux des principales marchandises importées au Sénégal de 1889 a 1900” in Le SÉNÉGAL – Organisation politique, Administration, Finances, Travaux publics, notice rédigé par les soins du Service local de la Colonie, pp. 350-363. Paris, Challamel Ed., 1900.
5 Ver MARFAING, L. “L’implantation des Maisons de Commerce au Sénégal et la reaction du commerce africain, 1885-1930” in BARRY, B. e HARDING, L. (Dir.), Commerce et Commerçants en Afrique de l’Ouest. Le Sénégal, Paris, L’Harmattan, 1992, pp. 309-346.
6 Ver JOJOT, C., Dakar – Essai de Géographie Médicale et d’Ethnographie, Montdidier, impr. de Grou-Radenez, 1907, p. 14: “Entre os animais, estão cavalos de pequeno porte, os M’Bayar, bastante robustos; os cavalos do rio, assim chamados porque vêm das margens do rio Senegal. Eles são maiores e suportam bem o clima. Os cavalos importados da Argélia são dizimados pela tifo-malária. Quanto aos cavalos da França sua existência é ainda mais precária.”
7 Ver TAMARI, Tal, Les castes de l’Afrique occidentale, artisans et musiciens endogames, Nanterre, Societé d’Ethnologie, 1997. Paulo Fernando de Moraes Farias, tratando de outro contexto, aborda a questão do papel dos griots enquanto garantidores da estabilidade emocional dos chefes. Ver FARIAS, P., “History and Consolation: Royal Yorùbá Bards Comment on Their Craft”, History in Africa, vol. 19 (1992), pp.263-297.
8 JOJOT, 1907, p. 32.
9 Sobre a tecelagem de faixas na África do Oeste, ver GARDI, B., Woven Beauty – The art of West African Textiles, Basel, Museum der Kultures e Christoph Merian Verlag, 2009.
10 Sobre a sociedade serer, ver PÉLISSIER, P., Les paysans du Sénégal – Les civilisations agraires du Cayor à la Casamance, Saint-Yrieix, Imprimerie Fabrègue, 1966, pp. 183-299 e KLEIN, M., Islam and Imperialism in Senegal –Sine-Saloum 1847-1914, Stanford University Press, 1968. Klein (p. 204) comenta: “A mudança econômica implicou pouquíssima mudança social no Sine. O cultivo do amendoim tornou-se parte do ciclo agrícola, mas os camponeses não se tornaram dependentes desse cultivo para o mercado e continuaram a plantar o milhete e o arroz que suas famílias consumiam. Como resultado, o endividamento era menos comum e a migração era mais rara no Sine do que em outros locais”.
11 O episódio foi descrito e analisado em detalhes por M’Baye GUÈYE. Ver GUÈYE, M., “L’affaire Chautemps (avril1904) et la suppression de l’esclavage de case au Sénégal”, in Bulletin de l’I.F.A.N., T. XXVII, sér.B., ns 3-4, 1965, pp. 543-559.
12 Segundo Ibrahima-Abou Sall, “Uma das práticas do colonizador francês que mais impressionavam as populações era certamente a que consistia em fazer circular através do país, como troféu de guerra para aterrorizar as populações, a cabeça decapitada de um opositor político ou religioso que tivesse pegado em armas contra sua dominação. Mamadou Lamine Dramé (1887), Samba Diadana Ndjach (1890), Baydi Kaché (cujo corpo foi jogado para os crocodilos em Podor) e Lam Tooro Siddik Sall (1891), Mamadou Boubou Soumaré (1901) foram vítimas dessa prática que não fazia parte dos hábitos das populações”. Ver SALL, I. “Les visions des colonisateurs par les populations du sud de la Mauritanie”, in GOUTALIER, R. (direction) Mémoires de la Colonisation – Relations colonisateurs-colonisés, Paris, L’Harmattan, 1993, p. 52.
13GUÈYE, 1965, p. 554.
14 GUÈYE, 1965, p. 549.